top of page

Imaginação educada, crença justificada

Outro dia, me deparei com o seguinte post de um amigo no Facebook: “Vizinho torrando grãos de café logo de manhã. O aroma e a memória afetiva me levaram instantaneamente a vislumbrar imagens de uma infância difícil, mas poética e divertida.” Fiquei pensando sobre essa incrível faculdade de imaginar que nós, os humanos, possuímos. Essa capacidade faz bem mais do que nos permitir simular um tempo e espaço que não existem mais; ela também nos permite criar ideias e pensamentos novos a partir das nossas experiências, crenças e memórias. A imaginação está relacionada às imagens mentais, apesar de não se resumir a elas, e os problemas decorrentes das relações entre imagens, imaginação e conhecimento — com todas as suas variantes — atravessaram a história da filosofia e continuam, até hoje, a ocupar nossos pensamentos.


De acordo com o senso comum, a imaginação é um fenômeno que decorre das imagens mentais, pois conseguimos “ver” coisas e pessoas que não estão presentes, além de reviver ou antecipar situações que não estão acontecendo no momento em que pensamos sobre elas. Nós temos a capacidade de “ver” mentalmente, tanto através da percepção quanto da imaginação. No entanto, há uma diferença importante entre esses dois modos de “ver” as coisas que não estão necessariamente presentes e/ou nem são fisicamente alcançáveis. Em linhas gerais e, ainda, resumidamente, o que diferencia esses dois tipos de experiências com as imagens mentais é o fato de que a percepção requer necessariamente estímulos externos, mas a imaginação independe deles. Ou seja, as imagens mentais geradas pela nossa imaginação não são diretamente causadas por aquilo que estamos percebendo, consciente ou inconscientemente.


Em seu livro Imagination: The Science of Your Mind’s Greatest Power (2019), Jim Davies nos fornece um exemplo bastante ilustrativo de imagens mentais que não são frutos de nossas percepções. Ele pede para que imaginemos um triângulo e que acrescentemos um lado para formarmos um quadrado. Depois, diz ele, acrescentem tantos outros lados até que somem 2001 deles. A imagem mental que formamos com “os olhos da mente” raramente será precisa ou correta. Isso porque, ou o polígono que “vemos” tem muito menos do que os 2001 lados, ou porque ele se parece com um círculo. O motivo é que falta “resolução”, digamos assim, para capturar os detalhes precisos em nossas imagens mentais. Então, pergunta Davies, como imaginar um polígono de 2001 lados é diferente de imaginar um círculo? A diferença está no fato de acreditarmos que é um polígono e não um círculo. Mesmo que removamos um dos lados desse polígono, que passará a ter 2000 lados, ainda assim ele permanecerá parecendo um círculo em nossa imaginação, e a diferença está apenas no fato de crermos que é um polígono e não um círculo. A diferença é, portanto, conceitual e não visual, mesmo que estejamos “vendo” apenas com os olhos da mente — e este é um exemplo de como podemos formar imagens não-sensoriais e que são diferentes dos sonhos ou das alucinações. Nossa imaginação é, portanto, frequentemente uma combinação de imagens mentais geradas tanto por nossas percepções quanto por nossa capacidade conceitual, ou seja, por nosso intelecto.


Graças a essa poderosa capacidade humana de imaginar, é que temos a matemática, o dinheiro, as cidades, a música, entre tantas outras coisas. Neste post, no entanto, eu gostaria de falar um pouco mais sobre as imagens tecnológicas que nos permitem “ver” o que jamais havíamos visto antes e, ainda mais, o que nem sabíamos que existia. Ou seja, tecnologias que nos permitem alcançar o que fazia parte, até então, do incognoscível e que, graças a elas, podemos imaginar outras muitas coisas, inclusive, outros corpos, outras galáxias, e outras histórias sobre a nossa própria existência.

A fotografia técnica científica registra experiências, informa pesquisadores e muitas vezes é, por si só, o principal resultado de pesquisas muito complexas. Por exemplo, a Fotografia 51, conhecida por ter capturado e revelado ao mundo a estrutura do DNA, forneceu informações cruciais para o desenvolvimento do modelo de dupla hélice que conhecemos hoje. Essa imagem foi crucial para que Watson, Crick e Wilkins desenvolvessem a teoria da dupla hélice e ganhassem o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina, em 1962. Infelizmente, Rosalind Franklin, coautora da fotografia com Raymond Gosling, já havia morrido há quatro anos e não chegou a saber que sua imagem foi, em grande medida, responsável pela revolução da biologia no século XX.


A fotografia foi e continua sendo, de uma forma ou de outra, valorizada pela ciência como uma importante técnica auxiliar de observação. As tecnologias de captura e processamento dessa classe de imagens são muito caras, diferenciadas, e geralmente estão restritas aos laboratórios de alta performance e observatórios equipados com sofisticadíssimos equipamentos que, não raro, são operados remotamente por poucos experts que detêm o conhecimento necessário para isso.


Ao longo do tempo, as tecnologias de imagem tem-nos beneficiado com descobertas extraordinárias sobre o mundo que não alcançamos nem com os sentidos e nem mesmo com o intelecto — ou seja, tem-nos proporcionado a oportunidade de ampliarmos o conhecimento sobre os nossos e outros tantos misteriosos corpos, nosso planeta, e sobre o universo do qual somos parte.


As imagens científicas dispõem de uma imensa variedade de técnicas especiais de captura, como, por exemplo, o infravermelho, o ultravioleta, o lapso de tempo, as imagens térmicas e a micrografia (câmera anexada ao microscópio), e sua produção é fundamental porque, muitas vezes, o avanço das ciências — sejam elas mais teóricas como a astrofísica, ou mais aplicadas como a medicina e a ciência forense — dependem diretamente delas. A produção e utilização dessa classe de imagens, no entanto, não se limitam apenas às ciências, pois elas também são utilizadas por empresas das mais variadas áreas, em operações militares, e até mesmo nas artes.


O propósito das imagens científicas ​​é revelar-nos atributos ocultos do mundo ao nosso redor e/ou invisível aos nossos olhos, e se utilizam frequentemente de fontes de luz não visível, radiação e sistemas de capturas de imagens especializados e de alta tecnologia. Essa tecnologias fotográficas são capazes de registrar uma ampla gama de objetos, fenômenos ou eventos transitórios em alta velocidade e em microssegundos como, por exemplo, câmeras remotas que capturam o progresso de explosões ou registram trajetórias de mísseis.


As tecnologias e técnicas científicas de capturas de imagens incluem, por exemplo, fotografia aérea, fotografia em close-up, fotomicrografia, fotografia e fotônica de alta velocidade, gravação infravermelha, micro-imagem, fotofabricação, fotomicrografia, fotogrametria, sensoriamento remoto, fotografia estereoscópica (3D), radiografia e fluorescência ultravioleta, entre outras. As aplicações mais comuns incluem a fotografia astronômica, sistemas endoscópicos, aparelhos de ressonância magnética, holografia, imagens de baixo nível de luz, fotografia panorâmica, fotografia periférica, sistemas de vigilância, telefoto, fotografia subaquática, etc.

A ênfase que se busca quando da captura deste tipo de imagem recai sobre o assunto científico e seu propósito — tanto é assim que os fotógrafos especializados costumam estar envolvidos não só na produção, mas também no desenvolvimento ou modificação dos equipamentos necessários ao atingimento do objetivo, além de muitas vezes integrarem as equipes científicas como pesquisadores por direito próprio.


A função primordial da fotografia científica é capturar objetos ou fenômenos assim como se apresentam, com a maior fidelidade técnica possível, num determinado intervalo de tempo. A princípio, portanto, há nas imagens científicas um predominante caráter indexical, pois elas estabelecem relações de correspondência de fato com os objetos ou fenômenos capturados, tanto pela precisão técnica que requerem — que tem como propósito alcançar a alta fidelidade em relação àquilo que está sendo registrado — quanto pela semelhança visual resultante. No entanto, é interessante notar que essas imagens ultrapassam, em muito, essa característica sígnica, pois, além de registros de uma realidade presente que foi capturada tecnicamente, elas apontam para o invisível e o que não está mais presente — como no caso de imagens de alguns tipos de corpos celestes, que deixam apenas rastros de suas passagens pelo universo e que precisam ser detectados nas imagens, analisados, interpretados e entendidos pelos cientistas.


Não raras são as vezes, que, ao analisarem essas imagens técnicas, os cientistas se defrontam com situações inesperadas, curiosas, ou até mesmo absurdas, para as quais precisam lançar mão tanto da imaginação quanto da razão, a fim de serem capazes de formular novas hipóteses sobre aquilo que foi registrado. Essas imagens daquilo que não percebemos com os sentidos, não alcançamos com o intelecto e que até mesmo ignoramos a possibilidade de existência, colocam em evidência o papel fundamental da inferência abdutiva nas descobertas científicas. O desconhecido ou o vir-a-ser, portanto, só podem ser vislumbrados e/ou entrevistos por meio do que podemos chamar de imaginação educada do cientista, ou seja, uma imaginação nutrida pelo conhecimento e pela razão que vai mesclando as inferências abdutivas com as indutivas e dedutivas.


C. S. Peirce já dizia que todas as ideias da ciência surgem por meio da abdução (CP. 5.145). A abdução sugere que alguma coisa “pode ser” (CP. 5.171); ela consiste em estudar fatos e delinear uma teoria para explicá-los (CP, 5.145) e, ainda, somente através da abdução somos capazes de criar conhecimento novo. A abdução está associada às possibilidades lógicas e, em última instância, contribui para o crescimento da razoabilidade concreta.

A abdução, assim como definida por Peirce, nos permite romper com a absurda concepção que separa a imaginação da razão, como se a primeira fosse uma faculdade do intelecto relacionada apenas às atividades artísticas, e a segunda a única apropriada ao pensamento científico. Ao formular sua tese sobre a inferência abdutiva, Peirce nos auxiliou na compreensão de que a capacidade de imaginar é uma ação do pensamento que, inclusive, movimenta a nossa própria racionalidade.


A imaginação, quando informada e educada, portanto, está muito mais próxima daquilo que chamamos de conhecimento ou crença verdadeira e justificada, e muito distante daquilo outro que Santaella (2004, p.96), numa expressão feliz que aqui registro, se referiu como as “brumas esotéricas da metafísica”.

Imagem: Chandra X-Ray Observatory/ NASA. Para saber mais sobre a imagem e a descoberta dos cientistas, acesse o link: <https://www.nasa.gov/mission_pages/chandra/images/reclusive-neutron-star-may-have-been-found-in-famous-supernova.html>


 

Referências

Davis, Jim. Imagination: the science of your mind’s greatest power. New York, NY: Pegasus Books Ltda., 2019.

Peirce, C. S. The Collected Papers. Ed. Hartshorne, Charles; Paul, Weiss e Burks, Arthur. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1931-1958. 8v.

Santaella, Lucia. O Método Anticartesiano. São Paulo: editora UNESP, 2004.

17 visualizações0 comentário
bottom of page