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O fim dos álbuns de família ou algumas questões sobre a nossa insana mania de fotografar

Atualizado: 13 de fev. de 2021

Em números estimados, podemos afirmar que são aproximadamente dois bilhões de smartphones em operação ao redor do globo. Com base numa suposição ultraconservadora, se cada um de nós fizer o upload de apenas duas fotografias, hoje, nas várias plataformas disponíveis na Internet, isso significa quatro bilhões de fotos armazenadas, em apenas um dia, nos ambientes virtuais. Agora conte quantos aparelhos digitais você tem em casa e veja como é ainda mais difícil imaginar e/ou estimar quantas fotos, no total, estão armazenadas em cada um deles. Podemos ir ainda mais longe e pensar sobre quando e com que frequência voltamos a procurar (e achar!) determinadas imagens que temos a certeza de ter produzido.


É preciso entender como o nosso relacionamento com o ato de fotografar mudou ao longo das duas últimas décadas. O processo de se obter uma imagem tornou-se progressivamente mais fácil, se considerarmos a evolução das câmeras analógicas para as digitais e, posteriormente, para os smartphones. Ao contrário do que acontecia em tempos mais distantes, em que escolhíamos com muito mais critério o que merecia ser registrado por nossas câmeras, hoje nós nem sequer pensamos duas vezes antes de captar uma imagem. Não se pode comparar, nem de longe, a facilidade de se fotografar com um smartphone com o complexo e caro processo de registro de uma câmera analógica. Portanto, como já havia previsto Susan Sontag, em On Photography, sua obra seminal de 1977, hoje tudo existe para terminar em uma fotografia.


O problema crucial, ao que parece, deixou de ser a capacidade de produção e passou a ser o armazenamento e a classificação da quantidade insana de imagens que produzimos diariamente – o que deixou de fazer parte, definitivamente, do reino de nossas capacidades humanas, há algum tempo, e migrou para o universo intergaláctico do big data. O resultado mais imediato disso é que cada dia mais somos obrigados a confiar os registros de nossas vidas, e, portanto, nossas memórias, recentes e distantes, às funcionalidades e capacidades de plataformas, programas e aplicativos.


O Google Photos, por exemplo, é um serviço totalmente voltado à organização de grandes bibliotecas de imagens. Quando você envia suas fotos para a nuvem do Google, o programa irá classificá-las; remover as duplicatas; escolher e sugerir as melhores; marcá-las; construir álbuns e criar GIFs animados de modo que você possa compartilhá-los com outras pessoas. A única coisa que você precisa fazer é despejar um monte de imagens por lá e o programa se encarrega do resto. Parece mágica, mas por trás dessas facilidades estão milhões de dólares em pesquisa e desenvolvimento.


Outro ponto interessante a se notar é que as imagens estão sendo usadas, cada dia com mais frequência, como parte da linguagem híbrida que se desenvolve nas redes. Imagens de todos os tipos são modificadas, remixadas e anexadas aos tweets e às mensagens de WhatsApp e outros serviços de mensagens instantâneas, agregando, assim, mais complexidade à comunicação. Essas possibilidades oferecidas por aplicativos dos mais diversos têm contribuído para uma total redefinição do que os mais puristas ainda entendem como fotografia.


Além dos pontos mencionados acima, muitos profissionais atuantes e envolvidos no mercado da informação afirmam que, num futuro não muito distante, a criação de valor real relacionada à imensa quantidade de imagens produzidas virá de tecê-las como um tecido, o que permitirá que daí sejam extraídas informações que, em seguida, poderão ser fornecidas como um pacote totalmente diferente de produtos e serviços não só aos usuários produtores das imagens, como a terceiros.


Um bom exemplo disso, embora ainda pouco sofisticado, são as imagens que aparecem como “suas lembranças” no Facebook. Essas “lembranças” podem se referir às imagens carregadas na plataforma há vários anos ou há alguns meses, mas os anúncios que surgem em seguida ao ato de rolar a barra da timeline não são mera coincidência. Caso sua foto tenha sido tirada em uma viagem a Paris, há dois anos, o anúncio que surge poderá ser de uma oferta de hotéis ou passeios imperdíveis na Cidade Luz, ou um anúncio de passagens aéreas ou malas de viagem. Ou seja, isso mostra o quanto o Facebook tem evoluído em sofisticar a inteligência dos algoritmos que organizam as fotos ao longo do eixo das relações e do tempo.


Seria muita ingenuidade de nossa parte, a esta altura do campeonato, achar que os sofisticados e caríssimos serviços de pesquisa e desenvolvimento de soluções tecnológicas, hoje disponíveis para qualquer um com acesso a um dispositivo digital e à internet, fossem se interessar apenas por guardar nossas memórias, vestígios de nossas existências, somente por amor à raça humana, sem interesses comerciais.


Fica claro que estamos sendo colocados frente à frente com questões éticas que envolvem o armazenamento, a manipulação e o uso de nossos dados. A ideia de entregar os registros de nossas existências ao Google, ao Facebook ou ao Instagram parece fazer sentido, dada a nossa incapacidade de lidar com uma biblioteca cada vez mais numerosa de imagens que geramos quase que instintivamente. Ao mesmo tempo, não podemos deixar de estar atentos ao nosso direito de dizer “não” e questionar as políticas de privacidade dessas empresas, buscando, se necessário, aquelas que estejam de acordo com o que entendemos ser mais razoáveis em nosso julgamento pessoal.


No entanto, não devemos deixar que o entusiasmo que nasce com a perspectiva de desentulhar armários e gavetas repletos de negativos e álbuns e viver na nuvem, seja obscurecido pelo medo puro e simples da mudança de paradigmas. Mas isso quer dizer, também, que precisamos rever, coletivamente, o que entendemos por privacidade, autoria, plágio, etc. Afinal, e sem sombra de dúvidas, vivemos numa época em que absolutamente tudo está sendo revisto e tendo que ser rediscutido à luz de novos parâmetros, novos conceitos e novas práticas e não seria a fotografia ou o ato de fotografar que seriam poupados disso.





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